domingo, 21 de agosto de 2011

conto - O DRAGÃO E A FEITICEIRA parte 1


o dragão e a feiticeira


I



            O cavaleiro chegou à estalagem num fim de tarde chuvoso. Pouco se lhe prestou atenção, pois, aos olhos dos homens livres que freqüentavam o lugar, ele sequer parecia um cavaleiro.
            Não trazia brasão, nem bandeira, nem túnica com armas ou símbolos heráldicos. Não havia armadura brilhante, apenas um lorigão de couro velho e surrado. A espada, única coisa que poderia impressionar, era levada enrolada num trapo, pendendo do lombo do cavalo. Cavalo que não era garanhão de batalha, mas uma montaria comum de viagem, acessível a qualquer homem de posses, fosse nobre ou não.
            Já passara da idade em que a maioria dos homens se casava, mas não era um homem velho. No entanto, os cabelos desgrenhados, a barba por fazer e a sujeira da viagem lhe davam um aspecto desgastado, fazendo com que parecesse mais velho do que realmente era.
            Aproximou-se do balcão, com a espada oculta sendo segurada como uma trouxa qualquer, e pediu comida e bebida, fazendo algumas moedas tilintarem. Perguntou sobre pouso, mas o estalajadeiro respondeu:
            -Não que o som do metal que tens na bolsa me desagrade, viajante, mas estamos com todos os quartos cheios esta noite. Muitos vieram de longe para a cerimônia que haverá no Templo do Castelo. Acreditam que lhes trará boa sorte... Trouxe para mim, até agora.
            Fez um gesto amplo, sorrindo por cima de sua barba espessa, mas limpa, e de sua barriga protuberante de homem de negócios bem-sucedido. A casa estava cheia.
            O cavaleiro respondeu:
            -Fico no estábulo, com meu cavalo. Pode cerrar as portas e abri-las somente pela manhã.
            O estalajadeiro talvez dissesse algo, movido pelo medo de roubo de animais, mas o cavaleiro apertou sua mão com muitas moedas de prata entre as palmas, e tudo o que ele fez foi contar o dinheiro e murmurar:
            -Mais vinho?
            -Não. Pretendo fazer vigília esta noite, pelo menos por algum tempo. Muitas coisas a meditar. Não conheço esta cerimônia do Templo... o que acontecerá lá?
            O estalajadeiro olhou incrédulo:
            -Não conhece? Pois é difícil crer! Deve ser o único que veio aqui por razão diversa.
            -Estive na guerra. Não sei do que há nesta parte do mundo.
            -E como vai a guerra?
            O cavaleiro lançou-lhe um olhar feroz. O sorriso do estalajadeiro se desfez. Era óbvio que, para aquele viajante, que ele agora tomava como simples soldado ou mercenário, a guerra não havia sido boa. Tratou de voltar ao assunto:
            -Bem... o Senhor do Castelo matou um bruxo. Um bruxo muito velho e muito mau, pelo que dizem. E ele tinha entre suas posses uma jóia, tesouro de tempos passados, talvez lapidada por um homem santo. De beleza rara e de poder ainda maior. Como símbolo de devoção e piedade, e gratidão pelos deuses o terem favorecido, ele vai ofertar esta jóia ao altar do Templo, na presença do sacerdote, numa cerimônia solene. Quem fizer sua oferta no mesmo dia, devido ao poder da jóia, será favorecido também.
            O cavaleiro sorriu de um jeito amargo:
            -O sacerdote será favorecido, não há dúvida.
            O estalajadeiro não disse nada. Aquilo soava como heresia. Podia ser verdade, mas não soava bem. Ficou olhando para o estranho, que comia e já não lhe prestava atenção, e depois foi cuidar de outros assuntos.
            O cavaleiro terminou de comer e foi para junto da janela. Ficou observando a chuva cair e a escuridão se adensar. O fim de dia virou começo de noite. O vinho circulava na estalagem. Havia risos, canções, jogos e raparigas, que chegaram após o pôr-do-sol. Nenhuma se aproximou dele. Parecia pobre, e gostava de parecer pobre.
            Era mais tarde e mais escuro quando ele foi ao estábulo, mas a alegria continuava no salão. Deitou-se sobre o feno, entregue aos seus pensamentos por muito tempo, próximo de seu cavalo, e dormiu sobre a sua espada dissimulada.

II


            O que o fez despertar foi o som de música.
            Não era música de estalagem, era algo muito mais sublime, tocado num instrumento que não podia discernir, e cantado em uma língua que desconhecia. Ainda era noite, e, com a exceção da música, tudo o mais parecia quieto.
            O cavaleiro se levantou.
            Ela estava em pé diante dele.
            Era alva e luminosa, como se fosse uma fada, e sorria-lhe com benevolência. Seu manto era claro e parecia esvoaçar ao redor de seu corpo esguio. Era bela. É claro que era bela, pensou ele, pois devia estar sonhando. A música cessou com a voz dela.
            -Não, não sonhas, Marcus. Eu realmente estou aqui. E preciso falar contigo.
            Marcus, pois este era o nome do cavaleiro, encarou-a nos olhos. O olhar dela fazia com que ele se sentisse fraco. Espantosamente bem, mas fraco.
            -Como sabes meu nome? Quem és tu, mulher?
            -Eu te observo há muito tempo, Marcus. Acompanho tua vida desde que eras jovem, quando acreditavas que se poderia corrigir o mal no mundo com uma espada na mão. Observei o orgulho que sentiste na frente de todos a primeira vez que derramaste sangue num duelo, bem como observei as lágrimas que derramaste em segredo por ter matado um homem. Sei que tua audácia e sede daquilo que julgavas ser justiça te valeram muitos inimigos ainda jovem, e que por fim teu pai te aconselhou a juntar armas com o exército que combate os inimigos ao sul. Sei que foste à peleja cheio de esperança. E que lá mataste muitos homens, e que também morreste um pouco.
            Embalado pelas palavras da mulher, nas quais havia um sutil encantamento, Marcus respondeu:
            -Vi coisas na guerra que me fizeram perder toda e qualquer esperança de ver o bem prevalecer neste mundo, minha dama. Parti para enfrentar os servos ferozes de demônios profanos e tudo o que encontrei foram pessoas como eu, apenas mais indefesas. Um ou outro guerreiro habilidoso, ou veterano, mas em sua maioria meninos que mal tinham idade para sustentar o peso de uma lança defendendo os lares, as mães e irmãs de violadores e saqueadores. Pessoas horrorizadas por ver a batalha chegar à soleira de sua porta. Não vi demônios, nem ouvi as pessoas de lá falarem sobre eles. Apenas quem mencionou isto foram os sacerdotes que pregavam entre nós. Os mesmos que nos acompanhavam sem lutar nem se manchar de sangue, mas que levavam para si boa parte do espólio. Por fim, me cansei daquilo. Dei meia volta sem avisar ninguém. Fugi de lá, pois nada lá me interessava mais.
            -E agora, temes morrer, não é verdade?
            -Não temo a morte pela morte. É um temor inútil, é como temer o sol ou o ar. Coisas que não se pode evitar. Temo morrer sem ter feito nada de valor neste mundo. Algumas rixas de quando era jovem e tolo, contra outros jovens que eu julgava terem caráter pior que o meu, e que deviam pensar o mesmo de mim. Uma participação insignificante, mas ainda assim cruel, num massacre covarde. Isso foi tudo o que fiz na vida. Tenho medo de morrer e não levar nada para o túmulo a não ser a vergonha e o vazio.
            O cavaleiro sacudiu a cabeça. Tentou se livrar do encantamento, e prosseguiu:
            -Quem é a senhora? Como sabes tanto de minha vida? Por que eu abro meu coração para ti?
            -Por que sou aquela que dará um sentido para a tua vida, cavaleiro. Alguém que lhe dará um feito do qual se orgulhar. E que poderá tornar tua vida longa e próspera, também.
            -Falas por enigmas.
            -A jóia sagrada que está no tesouro do Senhor do Castelo. Toma-a para ti. É o que deves fazer.
            -Por que devo roubar o que não é meu?
            -Por que não é dele, também. Pertencia a um homem velho e sábio, que mal pôde se defender do ataque que lhe foi proferido. E esta jóia pode impedir uma desgraça de ocorrer.
            -Não compreendo.
            -Um povo pode viver por gerações à beira de um vulcão e ignorar o mal que dorme ao seu lado, até ser aniquilado. Assim é o povo destas terras. Ele ignora que, no interior do bosque onde seu Senhor caça e os servos recolhem lenha, há, sob as raízes das árvores, o lar de um dragão. E este dragão despertará, em breve. E reduzirá a cinzas todas as pessoas que, num breve período de seu sono, construíram lares e vidas sobre sua cabeça. Ele dorme, mas não será por muito tempo. Quando todas as ofertas tiverem sido feitas ao Templo, o cheiro do ouro e das jóias o despertará, e o massacre que assistirás aqui, e do qual serás vítima, será pior que a guerra da qual participaste. Mas há uma maneira de detê-lo. Entre as muitas mentiras que os Senhores dizem, há algumas verdades. A jóia é de fato sagrada, e pode ser usada contra o dragão, antes que ele saia de seu lar, para subjugá-lo e destruí-lo.
            -Como?
            -Não sou uma mulher comum. Conheço as artes mágicas e, se eu tiver esta jóia em minhas mãos, poderei reduzir o poder da besta com minha vontade. E então um guerreiro bravo e forte poderia matá-lo.
            A feiticeira olhou para ele de forma mais intensa. E o antigo orgulho de seus tempos juvenis reacendeu.
            Ela continuou:
            -Um dragão não é apenas uma fera horrenda, provida de asas e escamas, que despeja chamas e abre a carne dos homens com garras. É também um ser astuto, e com um poder mágico inato e perigoso. Pode incutir o medo no coração dos homens, ou mudar-lhes as disposições do espírito com a força de seu pensamento e de suas palavras. Com seu desejo, pode por alguém num sono profundo e inalterável pelo tempo que ele desejar. De posse da jóia sagrada, eu posso impedi-lo de usar o seu poder. Ele ainda teria suas garras e seu hálito, mas encurralado em seu lar, sem poder voar e fazer chover fogo sobre seus inimigos, ele pode ser derrotado por alguém que seja forte e destemido. E então muitas mortes e muita dor seriam evitadas. Eu te escolhi, cavaleiro, porque sei que és capaz disso. Estás comigo?


Continua no domingo que vem. 

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