domingo, 4 de setembro de 2011

conto - O DRAGÃO E A FEITICEIRA parte final




                                                           IV

            Diante de uma velha e grande árvore morta, a Feiticeira ergueu a Jóia e esta brilhou novamente. A arvore estalou e rangeu. E, diante dos olhos atônitos do guerreiro, dividiu-se em duas. No lugar onde antes as metades se encontravam abria-se um túnel na terra, coberto, sabe-se lá a quanto tempo, de escuridão.
            Marcus avançou descendo cauteloso, e de espada em riste. Improvisara uma outra tocha para a outra mão. O túnel não era largo, e a Feiticeira precisava andar atrás dele. Ele se perguntava como poderia um dragão, que, embora nunca tivesse visto um, todos diziam ser uma fera soberba, passar por ali.
No entanto, após avançarem uns poucos metros, o túnel terminava.
            Terminava numa grande caverna, alta e larga como um templo, e esparramadas pelo chão, havia riquezas suficientes para a alegria de um rei. Não se via saída por nenhum outro lugar, e era uma questão que atormentaria a mente de quem se dedicasse a ela com calma saber como a besta que estava dormindo sobre o ouro ali chegara com seu saque.
            Porque o monstro estava lá. Grande como árvores centenárias, com escamas reluzentes desde sua cabeça réptil até sua longa cauda, enormes garras felinas e imensas asas coriáceas recolhidas sobre as costas. Mesmo sua suave respiração falava às paredes nuas de rocha sobre um grande e terrível poder contido.
            Ele dormia e isso era sorte. Talvez o cavaleiro pudesse ter enfiado a lâmina entre suas escamas sem despertá-lo. Mas não quis correr riscos. Entre as riquezas que, ao longo das eras, o dragão saqueara, havia um escudo próximo aos pés de Marcus. Ele depôs a tocha e tomou o escudo com a mão esquerda. Às vezes a tentativa de evitar um perigo, por estranho que pareça, é o que nos conduz diretamente para ele. Pois não há melhor maneira de despertar um dragão de seu sono do que tocar naquilo que lhe pertence.
            Antes que ele sequer estivesse próximo, a besta abriu seus grandes olhos e urrou. E com seu urro vieram espirros de fogo e morte e, de fato, o escudo salvou Marcus. Sentindo o braço quente, mas percebendo que a baforada já havia passado, o guerreiro avançou na direção da fera. Esta, porém, ao ver o brilho da espada que ele trazia na mão, ficou de frente para ele, ergueu alto a cabeça com seu pescoço de cobra e cravou no adversário seus grandes e gélidos olhos. No olhar do dragão havia um frio e uma força mais mortais do que o fogo que havia em sua garganta. Marcus sentiu como se a vida simplesmente fosse um sonho, e ele fosse um pedaço de nada. Seus braços penderam e toda a sua mente, coração e alma, por um instante, foram cativas daqueles olhos. O dragão ergueu a garra, sorrindo, pronto para fazê-lo em postas.
            Nesse momento, porém, uma luz mais forte brilhou ali. Era a Jóia Sagrada, que a Feiticeira, até então ignorada pelo monstro, erguia acima de sua cabeça, e neste instante a fera recuou, afastando-se de luz e encolhendo-se contra a parede, e Marcus recuperou a razão e atacou.
            Enfiou a lâmina no flanco da besta. Uma espada comum teria se estilhaçado, mas a lâmina do Senhor do Castelo era uma arma superior, e perfurou as escamas da fera. O dragão não demorou a revidar, mas o golpe de suas garras foi bloqueado pelo escudo do cavaleiro e, ato contínuo, a pata que desferiu o ataque foi decepada. Urrando de dor e medo, a criatura ergueu-se nas duas patas traseiras e preparou-se para abocanhar e incinerar o intruso, ao mesmo tempo em que este preparava um golpe certeiro mirando seu coração.
            -Pára dragão, se queres viver! – bradou a Feiticeira.
            Marcus quis perguntar o que significava aquilo. Mas a voz não saiu. Quis se voltar e falar com a dama, mas suas pernas eram como blocos de granito, e seu corpo estava como que preso por correntes invisíveis.
            -Ah, me ouviste? – continuou ela – Estás ferido mortalmente, mesmo que destroces meu lacaio, perecerás devido ao sangue que agora se esvai de ti. Mas eu conheço a arte da cura, e posso fechar tuas feridas e conservar tua vida em um instante. Nem pensa em me atacar. Não tens poder sobre mim com teus feitiços, enquanto eu segurar isto, e se fizeres um movimento brusco, solto meu cão em cima de ti novamente e ele termina o que começou.
            Então, a fera falou. Sua voz era como a de um homem velho, mas ainda vigoroso, e enchia o salão:
            -O que queres de mim, mulher? Meu ouro?
            -Quero mais que isso, besta. Quero teus serviços. Para sempre. Se queres viver, como sei que a palavra de um dragão não pode ser quebrada, jura lealdade a mim. Torna-te meu vassalo e põe teu poder sob meu comando.
            -Queres um dragão... como servo?
            -Quero aquilo que me faça ser rainha, soberana e terrível sobre o mundo – disse a Feiticeira, com uma gargalhada – E sinta-se orgulhoso. Eu não procuraria poder menor que o teu. E tu, o que preferes, ser um servo ou uma pilha de ossos junto de teu ouro?
            Marcus ouvia aquilo e, embora privado da voz, chorava com os olhos. Mais uma vez fora fascinado por promessas de glória e feitos nobres. Assim como seguira o canto de sereia dos sacerdotes para chacinar inocentes no passado, agora seguira as palavras envoltas em mel de uma encantadora cujo único objetivo era mais poder. Como todos os grandes mentirosos, ela provavelmente misturara muitas verdades com aquilo que era falso. Ela o mesmerizara completamente, talvez ele a tivesse amado, inclusive, e agora percebia que, mais uma vez, fora um tolo.
            Sua tristeza se tornou em ódio. Um ódio que cresceu dentro dele como uma labareda. E depois uma visão se juntou ao ódio. Uma visão de homens, e mulheres, e crianças, a correr de suas casas em chamas, e um horror alado, cavalgado por uma mulher de beleza incomparável e coração terrível, a cobrir seus campos de morte e destruição. Com os olhos, buscou o dragão. E lá estava ele, com uma pata decepada e ferido mortalmente no flanco. Poucos minutos entre a vida e morte. Uma criatura poderosa e arrogante, presa no pior dilema de sua vida. Nos olhos dele, havia desespero.
            Ele olhou para o guerreiro como se esperasse dali uma resposta.
            Talvez tenha sido, mesmo inconscientemente, um pouco de magia do dragão. Ou talvez tenha sido o desespero que o cavaleiro sentiu ao pensar que causaria justamente aquilo que buscara evitar, e a força que nasceu em seu coração naquele instante. Ou talvez tenham sido as duas coisas. O fato é que seu braço vibrou e a luz da espada brilhou mais forte por um instante.
            O cavaleiro girou o corpo e, embora seus pés continuassem grudados ao solo, ele arremessou a espada com toda a sua força. Por destreza, sorte ou destino, a ponta da lâmina atingiu a Jóia que havia na mão de sua inimiga.
            A Jóia se esfacelou em mil pedaços, e a Feiticeira gritou horrorizada. No instante seguinte, o dragão passou pelo lado do guerreiro e projetou-se sobre ela. O cavaleiro e desviou os olhos. Não houve fogo e, um momento depois, não havia mais mulher alguma ali. O monstro a devorara.
            E assim parara de sangrar e salvara sua vida. Belas mulheres como refeições tem efeitos muito benéficos sobre dragões.
            Mas, como foi dito, entre os tesouros do dragão havia várias armas, e o cavaleiro apanhou uma lança dentre as jóias, taças e moedas, e arremeteu contra o monstro. Recuperara o controle de seu corpo e, já que despertara a fera, precisava terminar o que começara. A posição em que ele estava lhe favorecia.
            Aquela arma não atravessaria as escamas do monstro, mas o ferimento que ele fizera com espada, embora não fosse mais mortal, ainda não fechara completamente, e a fenda que havia na couraça ainda estava lá. A lança fez um ferimento muito mais profundo e a criatura urrou pela última vez, girou o corpo esparramando seu ouro e morreu.
            Quanto a Marcus, apesar da vitória, ainda havia tristeza em seu coração. E nenhum desejo por fama ou fortuna. Tomou um pouco de ouro do covil do monstro, nada que o fizesse poderoso ou rico demais, mas que com certeza o sustentaria pelo resto de seus dias, se ele soubesse poupar, e partiu dali. Pretendia acomodar-se anonimamente em algum lugar distante e nunca mais ter de brandir uma arma na vida. Se teve sucesso neste intento, é coisa que esta história não conta.
Com sua passagem, as duas metades da velha árvore se fecharam novamente e o tesouro do dragão permaneceu secreto.
Muitos lamentaram a morte do Senhor do Castelo e o desaparecimento da Jóia Sagrada, e recompensas foram oferecidas por quem trouxesse à justiça o cruel invasor, assassino e ladrão, coisa que jamais ocorreu. Não havendo a grande oferta para a cerimônia do Templo, muitos dos devotos que teriam outras oferendas a fazer desanimaram e voltaram para a casa. Os sacerdotes, indignados, disseram repetidas vezes que os deuses estavam descontentes, ou tais desgraças não haveriam ocorrido.
Ninguém soube do terrível perigo que dormia sob a terra daquelas paragens e nem de como ele havia sido evitado.
O fato é que, por estranhos caminhos, os deuses haviam favorecido imensamente o povo daquele lugar e todos os que para lá haviam sido atraídos. 


Escrito por Luiz Hasse 

confiram a parte 1 aqui 
confiram a parte 2 aqui


Assim terminamos a história do cavaleiro Marcus 

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